João Maciel
Ora, lê, relê, trabalha e encontrarás
por Dani Maura
A essa altura já tem se tornado uma prática escrever estes textos trazendo as questões que foram abertas no momento do encontro, da conversa com cada artista. É assim que costumo ouvir: escutar de maneira intensa, de modo a deixar-me levar, pela fala, para algum ou alguns lugares do passado ou de um futuro. Não buscar encaixar o que me é dito em julgamentos, mas sim abrir (será o agora essa abertura?) para conexões imprevistas, esperando uma voz interior que parte mais da altura do coração do que da cabeça. A conversa com o João me traz a mesma força dessa postura que acabo de descrever e que busco cultivar: sobre não moralizar, sobre abrir para o diferente. João nos fala dessa abertura a partir de uma referência que é sua própria história, o lugar de onde vem: de racismo e de desigualdade.
Um fazer e uma maneira de fazer que parte das próprias dores e que é cura, um processo de cura para si, para as relações sociais, na relação com as matérias, na relação com o tempo. E como se trata de cura, não deixa de lado as vulnerabilidades, as dúvidas, as mudanças, os pontos em que necessita se empenhar. João me faz pensar sobre a importância de, quando diante de um outro, buscar saber o lugar de onde se vem e onde se está, considerando as questões de raça, gênero e classe; para mim, isso é um tipo de inteligência que permite reconhecer como os próprios privilégios podem embotar a visão que se tem do mundo, podem deixar o mundo menor.
João diz: “trabalho fora para alcançar dentro”. Isso me faz lembrar da alquimia, do trabalho com a matéria transmutando o ser, o que me leva a outros dois lugares de pensamento: sua relação com os cadernos, as anotações cotidianas sobre seus diferentes assuntos de estudo, uma notação que é muito visual e mesmo pictórica, seus cadernos são, para mim, uma prova material de uma experiência de tempo, de constância; outro ponto são os trabalhos realizados com os materiais encontrados nas ruas, o descarte e a ruína, a partir de seu olhar, se tornam oferendas para um meio de vida que tem uma inteligência visual, que ressignifica e que não descarta a matéria, e essa ação acontece no espaço entorno, na vizinhança, de maneira incorporada à rotina. Se o mundo acaba um pouco todo dia, esses trabalhos que acontecem na rua são um lembrete de que o mundo renasce em tudo e o tempo todo.
E por falar nesse fluxo de vida, penso nas diferentes técnicas e suportes artísticos pelos quais a expressão de João transita, em como as ideias podem ganhar diferentes corpos e em como a estrutura de pensamento de uma linguagem artística se manifesta em outra, por exemplo, como a cor aparece na tridimensionalidade, como a cor, na matéria do spray, ressignifica o mobiliário encontrado na rua, como o desenho, um rabisco, inspira o modo de diferentes materiais se agregarem, como João mesmo me disse em uma de nossas conversas. As imagens estão sempre experimentando diferentes encarnações, reforçando a ideia da diferença, da diversidade e que o tempo de cada técnica e linguagem também é fundamental pelo modo como se criam ritmos, assim se mantém o movimento, se mantém as matérias e o processo de criação vivos. Não se representa, e sim se apresenta a vida pela maneira como se estrutura o processo.
Vejo João como uma espécie de artesão que sonha com outros mundos e que os traduz para esse campo em que nos encontramos, essa tradução é também um exercício de se entregar para as coisas, de sonhar o sonho das coisas e dos outros seres.
Penso em tudo que pode significar cura e agradeço pelo trabalho que ele faz para que nos sintamos em casa a céu aberto, de peito aberto.
João Maciel, 1980, vive em Belo Horizonte cidade onde nasceu, tem bacharelado e pós-graduação em artes plásticas e contemporânea pela Escola Guignard 2002/2004. Desenvolve trabalhos em plataformas diversas e tem variados motivos como assunto. Objetos, desenho, pintura, escultura, ações, instalações ... Tem obras em acervos como do Museu Histórico Abílio Barreto e MAM-RJ. Já apresentou trabalhos no Brasil e exterior em países como França, Espanha, Argentina e Uruguai.
(soundcloud)
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Proposta de criação
relações
relação com as referências, escrita, diagrama, tridimensionalidade
Publicado em 03 de fevereiro de 2022